segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

À deriva

A primeira vez que se viram foi acidental. A última vez também. No meio, por acidente: paixão. Sem querer ("ai") um filho. Rotina, várias reuniões de família e até, vejam só, fé, assim displicentemente.

Eram tão e amar era tão corriqueiro que se amavam esquecidos

da energia que se gasta,
da atenção que se devota,
da memória que fecunda.

A última vez que se viram: acidental.
Um faca. O outro sangue.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Na eterna véspera

Engraçado como amar é presença. Amar não deveria ter nada a ver com os fósforos Fiat Lux, nada a ver com ponto de ônibus, nada a ver com odiar a chuva. Percebi que amar está em todo lugar e que tudo pode ser propício. Engraçado como a vida é maleável e relativa quando se fala de amor. Você existe em função de uma dimensão interna de si mesmo, que jamais se prometeu possível, que não deveria ter lugar no tempo. Interessante como assim, sem menos, as coisas escolhem ser outras coisas dentro de nós e com isso o dia se torna uma imensa coletânea de momentos instáveis, sem vínculo. Ainda assim, o amor consegue preencher todos eles. O amor. Que linha estreita é essa que costura tão acertiva todos os retalhos incomunicáveis da rotina? De que infinitos para cima ou para baixo vieram esses líquidos, esse fluidos impassíveis do amor que penetram em mil camadas sem pudor nem erro? Que grande besteira ou falácia é essa sentença incorrigível, quem enviou, quem decidiu? Amar assim, por ser tão oni, tão sempre e essas palavras tão totais, jamais se explica por dentro.

E olha só, tudo já foi dito, é desesperador e ao mesmo tempo reconfortante.
Estamos todos juntos e sós.

(sem luta, com pudores)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Este ainda não escrevi

Estreito é meu rio, por onde navego, meu rio magro, meu desejo mais profundo.

Estranho é meu rio, meu pedaço de nunca-mar. Nado por ele todos os dias e a vida me consome nele como se algo no fundo pudesse ser maior do que sua majestosa extensão. Não há nada no fundo, descobrirei mais tarde, não há nada lá. Esse rio é só a envergadura dos seus dois braços. Esse rio que corre por si só dentro das minhas veias, fora das minhas garras, esse rio está estragando toda a minha vastidão,

ele secou meus inteiros, assoreou.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

cama

eu viro pro lado e sempre abraço travesseiros.
faço pra descurvar melhor as dores no ombro e pra amar mais.

Nucas de algumas mulheres

A vida me fode todos os dias. Mas penso na conjugação estupidamente bela entre vinte anos bem feitos e os pescoços falantes de tantas mulheres se dobrando e deitando e se coçando e perfumando, numa dança que movimenta o mundo há milhares de anos em Goiás ou Istambul pela fresta dos olhos de quem se deleita e por isso canta.

As nucas delas hão de redimir as marcas, os ombros furados pelos sutiãs, os desgostos, a secura. Elas vão nos fazer andar de costas, amar de costas, fechar os olhos. As nucas são suaves, sempre virgens, bem casadas com mãos, com línguas, com tinta. Amigas de pelinhos frágeis, narinas sedentas, vermelhos e roxos. Que bela contra-capa dos lábios, a nuca. Que sensibilidade estreita, contínua, com duplas raízes, para cima e para baixo.

Às vezes, quero só nucas. Nem quero seios, nem beijos, nem palavra nenhuma, não. Quero dias inteiros me cansando na preguiça impregnada nesses eixos.

Cabelos deslizam jogados pra cima, descem e cobrem esse pudendo permitido. Se eu te viro agora, penso, e me alegro: há de haver um sorriso no verso.