terça-feira, 31 de agosto de 2010

M(eu)

Percebo, meu caro, que se entrasse vagarosamente no seu peito, deslizando cuidadoso pelas redes enrijecidas dos seus tantos corações, arrancando a matinha velha, o caldo que não se escarra, escutando a boa canção dos vazios. Se eu entrasse nesse seu peitinho moleque, meu caro, se eu entendesse a ritmia cansada da sua juventude, se eu reprogramasse seus ânimos difusos. Se fosse entrando irresponsavelmente e recortando as telas imensas do seu imaginário mavioso, me vendo nessas angústias e gozos, reconhecendo seus amores de assuntos passados. Se eu fosse caindo sem volta na bruma incerta dessas suas conclusões de aqui-agora, nesse seu olhar às vezes sem alma, às vezes vulcânico. E se eu entrasse e abrisse e fechasse portas e mais portas atrás de mim destas salas de ocos e abarrotados, de desfalidos, de datas perdidas, perguntas duplas e seus pais e irmãos num corredor enorme e mais gente deitada nos leitos pelos cantos dos cômodos, querendo palavras de afeto, pouquinhas palavras sem peso, pouquinhos olhares. Iria correndo, pro fundo, profundo, pra sempre, correria e entraria, vermelho, nebuloso, estrondoso, imenso, meu caro, que abismo, meu caro. E se chegasse a um fim, ou me cansasse e portanto chegasse, chegaria a você, acuado num cantinho, num meio, no alto, desnudo, perdido. Só assim. Só assim o amaria sem medo, meu caro, meu filho. Se entrasse, lhe juro, o arrancaria dessas suas raízes ressequidas, dormentes, e me plantaria tão suavemente nesse seu lugar, nesse transe. Traria você pra este mundo imenso que você nunca viu e voltaria também pra onde na verdade e sempre, sempre eu de fato estive.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Deste (meu) tempo

Eu acredito que vou suavemente renascer. Retomar meus gestos duros, reconstituir a postura estreita, reanimar meus ânimos, resgatar meus valores, reatar os laços das minhas incomplitudes, ressignificar estas dores, reorganizar os delírios, retardar ansiedades, repetir o mantra, relevar as pirraças, reavaliar os castigos, recobrar as forças.

Sendo que nunca os tive inteiros.

sábado, 28 de agosto de 2010

Uma dedicatória

Posto que gostaríamos de ser nós mesmos se não fôssemos o que somos, nós somos nós?

Entender

A dureza dos muros que me impedem de ser outros que não eu.

Amar algo que seja um segundo olhar, longe dos meus mundos de delírio.

Sofrer como quem goza. Faz parte.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Meus melhores amigos morreram.

No fim da noite estou sempre só e insatisfeito.

E só. Solidão tem mais peso, sou eu quase que peço pra tê-la. É um segundo o limiar da noite, quando se esgota o humor de fala solta que rege nossa romaria de bar. É de repente, se morre. Mas é também bom, e confesso, matar um por um, face por face, aos poucos e muitos. Até o sono chegar sem remédio.

Viver pode ser diferente

Eu me sentei ali embaixo desse bloco soviético mais uma vez. Sento lá às vezes pra me sentir fora de casa, nunca consigo me sentir tão longe. Estamos indo sempre pra casa.
Tenho uma sensação muito forte ao entardecer, uma metáfora cruel de tudo que desvanece, eu que sou tão perecível, tudo me escapa tão simplesmente. Me sinto vivo e ávido quando encaro o contorno das árvores e a luz cortando as copas, as folhas vão mudando de cor e eu sigo pensando como é pesado ser mais um no filão de tantos que foram engolidos por essa beleza embriagante de viver. Preciso escrever. Preciso escrever mais sobre minha rotina atômica, minhas perguntas incessantes, meu devir excêntrico. Precisamos, Raiz, viver também destas migalhas, quase imperceptíveis. Fico à espera das narrativas grandiloquentes de ser-estar e me engesso na filosofia das minúcias, dos pequenos abraços pensados, beijos tão cotidianos, desejos impetuosos de lua cheia, mitos em que quero acreditar cegamente. Quero ser místico e fluido. Tudo pode ser agressivamente, infinitamente, leve até que eu me afogue.


ler lava. (que eu me lembre)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Em mim

Depois da quarta vez que bateu na porta e aquele de dentro não respondia, resolveu que ia arrancá-la dali num só golpe. Abreeeeeeee. Ia se espalhando num refluxo inevitável a atmosfera de obscenidade da intimidade tempestuosa dos dois. AAAAAAAAAAbraaaa. Chorava quente de queimar o rosto, viver poderia ser bom quem sabe até pros vizinhos que ouviam, aquilo era uma lógica interna, internalizada, um universo sem remédios de dores e gozos extremamente particulares. Aquele de fora ia empurrando a porta com os ombros, depois pegou uma cadeira velha e correu uma pequena distância no apartamento apertado, explodiu a fechadura e caiu dentro do banheiro mergulhado na penumbra. O mundo ali dentro era desmontado e ardente, o de fora pensou que poderia ter evitado chegar até ali, e dessas coisas que se pensa sem querer, pensou no primeiro dia, a criação, se arrependeu de novo. Pega! Prova! Toma! gritava o de dentro, ou era o de fora, ou ambos, ou apenas esse vazio oco que criaram e em que entraram pra sempre e se perderam pra sempre e sem fim.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

carta perecível

Faz tempo que eu não venho aqui nem lá.
Ando perdida, ando silêncio.
Não sei o que acontece por seus bares e os meus estão cada vez mais sem sentido
Não sou mais a atriz de antes, desaprendi a escrever.
Sou um melindroso vira-lata travestido de mulher, sempre fui.
Ainda percorro as mesmas esquinas investigando inutilmente a pluma que pousa desatinada no lado de dentro.

Durma bem, leãozinho. Não se esqueça de perdoar seus pecados,
sinto.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

(sem assunto)

Existe, deve existir este instante tenebroso em que as coisas despregam do eixo a que normalmente deveriam se ater e se tornam então tudo isso que nos consome. A angústia de viver é um peso. E são tantas as definições, os julgamentos, tantas bocas me dizendo que é algo entre uma ingratidão adolescente e a má alimentação. Mas é tudo. São leituras e conversas, e mergulhos ingênuos pra dentro de mim. São saltos em que ignorei a dureza do impacto. Eu não pensei onde poderia chegar, meu deus, sequer considerei a força dessa noite escura em que ia entrando fugazmente. Quão alheio ao poder da vida e à correnteza elétrica dessa linfa que escorre fui.

Eu acredito no castigo dos destemidos e dos ingênuos. Eu acredito. Que lucidez tardia.

sábado, 7 de agosto de 2010

Uma revolução de um só.

E é necessário que como numa condolência a mim mesmo, eu entenda que a pior das amarguras dessas contradições é essa sede de querer que apesar do incêndio, amanheça e que adoeça (eu) sempre, sempre. Nessa beleza de estupro que é viver em mim.

Como me colocar no mundo com os meus sonhos

Repito com a voz deitada, essa da orquestra das minhas repetições: viver é bom, viver é bom, meu mantra ridículo, minha redenção.

Chega-se, eu vejo, num ponto em que é o fim do poço, bem alto, tão alto. Sem volta. A mesma ladainha dos infortúnios vai se enrolando na sujeira dos micro-problemas e se tornando um furacão enorme, zangado. Viver é bom, viver é bom. Então arrastar o dia é ter que ir mergulhando profundo em pequenos goles de alienação, tapar o corpo todo, até a cabeça, sem deixar nem a boca pra respirar. Que ironia mais materna. Mas aí a gente vai voltando. Sem querer, tem algo que desperta, tem algo que nos chama... viver é bom / E ainda que eu tenha conseguido chegar aos lugares em que sempre quis chegar, quando me percebo ali, no panteão dos meus sonhos, me sinto atordoado pelas mesmas eternas dores, eu as carrego no peito (deve de fato existir um peito, porque é mesmo ali que doi. Os anzois de que falava) eu conheço belas pessoas e tento me desligar, tento firmar meus olhos, sorrir sem pensar no meu reflexo / viver é b... / tento equilibrar meus humores. Eu já aprendi que é tudo tão banal, mas não consigo sair, não consigo deixar. Giro nessa consciência extrema dos meus movimentos, das minhas permissões, dos meus carinhos tão ornados. Parece uma leitura interminável, o desespero de pensar como bem dito: "às vezes não queria existir tanto".